Apreciação sobre o Coçar
Everaldo L. Santana - Filósofo
Certa vez, o filósofo francês Montaigne sobre o coçar comentou: "coçar é uma das mais doces recompensas da natureza e a mais à mão". Será que Montaigne tem razão ao chamar o coçar de doce? O que é esse coçar que fez o filósofo se expressar dessa forma?
Há, de certo modo, uma razão no que Montaigne disse. Vamos a ela.
A razão de Montaigne está no fato de que a palavra coçar se deriva do latim "coctiare" que possui estes significados: cozinhar, preparar ao fogo, queimar, agitar. Em grego, o coçar se traduz pela palavra "knizo" que apresenta estes sentidos: inflamar, excitar. Daí se entende que o ato de coçar expressa uma agitação seguida de uma excitação. Essa agitação e excitação ocorrem em função dos nervos, só há coceira onde existe terminação nervosa, portanto, nem as unhas nem os cabelos coçam, pois neles não existem nervos.
Como foi dito acima, do ato de coçar participa a excitação e nela também se inclui o prazer, pois coçar é um ato prazeroso enquanto "doce", como disse Montaigne. O coçar é tão prazeroso e sublime que levou o rei da Inglaterra Jaime I a afirmar: "Ninguém além dos reis e príncipes deveria ter comichão porque a sensação de coçar é sublime". E há um provérbio antigo que diz: "melhor que fortuna é coçar onde precisa". O escritor Montagu cita um personagem Thomas Carlyle que fala: "o auge da felicidade humana é coçar onde precisa". Outro provérbio antigo diz: "você coça as minhas costas que eu coço as suas". Eis aí fatos de como a coceira participa intensamente da vida humana a ponto de ela exprimir um modo de comportamento que reflete a maneira de pensar coletiva e individual. Coletiva enquanto social representado pelos provérbios; individual enquanto opinião particular, subjetiva.
Não se vá pensar que apenas o ser humano sente e explicita o fenômeno do coçar. Os animais, sejam eles silvícolas ou domésticos reagem, em forma de coceira, quando os insetos e as intempéries excitam suas terminações nervosas. Dessa forma, animais e humanos experimentam o mesmo fenômeno, porém guardando as devidas proporções.
Além dessas referências, o dramaturgo inglês William Shakespeare produz uma conexão entre coçar e opinar, eis aí : "what's the matter, you dissentious rogues, that, rubling poor itch of your opinion, make yourselves scabs?" (o que há, patífes arruaceiros, que esfregando a pobre coceira de suas opiniões, conseguem formar cascas?).
Tendo ainda o evento coçar como elemento em baila, o escritor Montagu apresenta duas outras citações: a de Samuel Butler e a de Ogden Nash. Ei-las: Samuel Butler: "...he could seruples dark and nice, and after solve in a trice, as if divinity had catch'd the itch on purpose to be scratched". (...ele conseguia criar escrúpulos nefandos e ou doces, depois resolvê-los num átimo, como se a divindade tivesse contraído sarna com a finalidade de ser coçada). Ogden Nash: "one bliss of which there is no match is when you itch to up and scratch". (uma bênção para qual não há igual é quando a gente sente um comichão dos pés à cabeça e se coça todo então).
Essas três pontuações em torno do prurido (do coçar) não ficam apenas no âmbito prosaico. Em épocas remotas, ou seja, em tempos nos quais as sociedades mais antigas e de caráter religioso, o controle sobre as reações do corpo era uma prova de elevação espiritual, de modo que quando alguma parte do corpo coçava, o religioso não fazia nenhum esboço que indicasse intenção de coçar a referida parte corporal. Esse ato era praticado por monges orientais em seus momentos de meditação. Controle total sobre o corpo implicava em ignorar qualquer ação externa. A imobilidade em estado de concentração não admite coceira, a qual provocaria a desconcentração. Ignorar o externo. Eis o lema dos monges.
Finalmente, o ato de coçar é particular e intransferível, entretanto controlável. Houve época em que escravos brancos e negros eram proibidos de se coçarem enquanto serviam a seus algozes. Visto assim, até a coceira é, de certa maneira, manipulada.
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Um comentário:
muito bom.
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