6 de mar. de 2008

Leitura de férias

Já faz algum tempo que me coloquei uma atividade para o período de férias: ler!
Não que não leia durante o restante do ano nem estou querendo dizer que outros não lêem. O que estou querendo dizer é que, já faz algum tempo, me dei a tarefa de ler não qualquer livro ou revista, mas eleger um autor e ler, descompromissadamente, o máximo de obras dele, durante o período de férias: desde o encerramento das aulas, no final do ano até o reinicio, no começo do outro ano.
Portanto, não se trata de estudar, mas de ler, para saber a quantas anda a produção literária de determinados autores. Foi assim que já passei por Jorge Amado, Machado de Assis, Marx, Platão, entre outros. Este ano elegi um sujeito que sempre admirei: Nietzsche. E não é que o cara é bom mesmo (Lembrando, mais uma vez, não se trata de atividade de estudo, mas de leitura diletante em período de férias! Trata-se de uma leitura pelo prazer e não pela obrigação profissional).
E já que li, e gostei, não custa nada compartilhar algumas palavras desse alemão que morreu justamente no final do século XIX.
Veja só o que disse para iniciar um de seus livros: “A GENEALOGIA DA MORAL”. Trata-se de algo que se aplica a nós que trabalhamos com as idéias: “Nós os pesquisadores da área do conhecimento, nos desconhecemos mutuamente. Isso por um motivo específico. Nunca nos procuramos...”. Talvez esse tipo de afirmação não diga muito a muita gente, mas a quem se dedica ao estudo e à discussão das idéias, ao ensino... é um puxão de orelha e tanto: não conhecemos nossos contemporâneos e arrotamos os ranços de pensadores do passado; não nos conhecemos pois não nos procuramos e, conseqüentemente, não nos respeitamos, nem nos admiramos com o que o outro disse. O que é pior, e isso vale para todas as profissões: muitas vezes não conhecemos os colegas com quem convivemos e trabalhamos. Passamos várias horas do dia com nossos colegas de trabalho e não os conhecemos...
Triste mundo este: mundo dos desconhecidos. De solitários...
Outra sacada maravilhosa, que pode ser aplicada a todos os que pensam dominar muitas informações, mas não se dedicam a sua busca. Diz ele, no mesmo livro, chamando a atenção para a necessidade de método de estudo, antecipando em mais de 100 anos nossa crise educacional: “é verdade que, para praticar a leitura como uma arte, é necessário antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje muito esquecida [...], uma faculdade que exige qualidades bovinas e não de um homem moderno, ou seja, ruminação”.
No corre-corre a que somos atirados, não nos sobra tempo para refletir... E aí podemos nos perguntar e, quem sabe, entender, por que somos uma geração de analfabetos: nos falta a capacidade da “ruminação”. Na ânsia do fazer não nos sobra tempo para a tranqüilidade de ser!
“ASSIM FALOU ZARATUSTRA” é um livro que merece ser relido várias vezes. Depois de vários anos retornei a ele, agora numa leitura de férias. Veja o que anotei sobre nós que somos ensinadores e aprendizes. Diz Zaratustra, admoestando aos que se perdem repetindo o que outros disseram sem se dar ao trabalho de produzir o seu próprio pensar: “Recompensa mal um mestre quem se contenta em ser sempre discípulo. E por que não ousam destroçar minha coroa?
Vocês me veneram. Pois bem, e se um dia sua veneração tivesse de sucumbir? Cuidado para que não os esmague uma estátua! [...].
Você não haviam ainda procurado a vocês próprios, então me encontraram. Assim fazem todos os crentes: por isso vale tão pouco toda fé.
Agora lhes ordeno que me percam e se encontrem a vocês mesmos”
Noutra momento diz que “cada povo inventou a sua própria língua, segundo os costumes e a justiça.
Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal; e, qualquer coisa que diga, mente – e qualquer coisa que possua, roubou-a” Percebeu a atualidade dessa reflexão do Zaratustra, há mais de 100 anos?
Quer mais? Em “ECCE HOMO”, entre outras coisas recrimina a moralidade amordaçante: “A única moral que se ensinou até hoje, a moral da renúncia, traz uma vontade de aniquilamento, nega radicalmente o próprio fundamento da vida”
Muita gente se acha dona de todo saber. Em razão disso vê tudo e todos como errado. Para esses, seu ponto de vista é o único correto:: “seja qual for o ponto de vista filosófico em que nos coloquemos hoje, em toda parte o caráter errôneo do mundo no qual acreditamos viver nos aparece como a coisa mais certa e a mais sólida que nossa visão possa captar”, escreveu em “ALÉM DO BEM E DO MAL”
Não quero cansá-lo com tudo o que disse nem fazer julgamento de ninguém. Mas é um fato que muitas vezes nos acomodamos em nossos próprios pontos de vista e por isso não nos damos conta da riqueza que está por aí: nas leituras que podemos fazer; nas troca de idéias que podemos desenvolver; nos debates que podemos travar...
Agora retomo o que disse no começo. Minha intenção é apenas partilhar algumas linhas do que disse um pensador polêmico. Não para minimizar outras pessoas, mas para promover o debate. Principalmente porque esse pensador, Nietzsche, apesar de ter morrido há mais de 100 anos é atualíssimo. Questões que ele levantou, principalmente em relação à moralidade, permanecem candentes e pedindo posicionamento.
Neri de Paula Carneiro
Filósofo, Teólogo, Historiador
Leia mais: http://falaescrita.blogspot.com/
http://ideiasefatos.spaces.live.com
http://www.webartigos.com/

Um comentário:

Anônimo disse...

GOSTARIA DE RECEBER UM RESUMO ANALÍTICO DO TEXTO ABAIXO:

Sociedade e Cultura

Neri de Paula Carneiro

A temática enunciada no título envolve conceitos que, embora se relacionem, são completamente distintos. E isso já é um primeiro problema: trata-se de ver a sociedade e a cultura a partir da ótica da sociologia, da antropologia ou da filosofia? Trata-se de frisar que a sociedade que produz a cultura ou a sociedade já é uma manifestação cultural?
Neste texto vamos apresentar algumas reflexões que terão esses elementos como ponto de partida. Temos claro que estas reflexões exigem maior aprofundamento. Entretanto, justamente por que o tema exige maior reflexão é que não vamos nos furtar aos nossos comentários e, justamente por isso, queremos propor a reflexão, não para falar de sociologia, mas para entender a relação da sociedade com a cultura. E para isso nos utilizaremos tanto de critérios sociológicos como filosóficos.

Uma escolha

Não vamos nos deter na complexidade da relação entre nossos eixos temáticos: sociedade e cultura. Vamos partir de uma escolha. Vamos assumir que as ciências humanas, têm uma forma específica de tratar a sociedade a qual, por sua vez, é resultante de processos culturais. Portanto estamos assumindo que a sociedade não é anterior, mas resultante – pois construção humana – de processos culturais específicos. Dessa forma nosso ponto de partida para entender a sociedade é a afirmação de que ela pode ser compreendida a partir de manifestações específicas. Em função disso podemos dizer que a compreensão da sociedade somente é possível se nos referirmos a agrupamentos humanos específicos. E esses agrupamentos também são resultantes de processos específicos. Disso se conclui que nenhum grupo humano é igual a outro; pode-se falar de aproximações, mas não podemos nos esquecer que os fenômenos sociais não se repetem: nem no mesmo grupo social nem em outros grupos, distantes ou correlatos.
Em poucas palavras podemos dizer que as diferentes construções sociais produzem as diversas sociedades. Os comportamentos de uma família são distintos de outras; as manifestações sócio-culturais de uma cidade são distintas de outras; a formação de cada país é específica e não se repete. Um exemplo histórico comprova essa afirmação. África do sul e Estados Unidos são países com culturas completamente distintas, embora seus processo de colonização tenham sido originários da Inglaterra. Brasil e vários países da África foram colonizados por portugueses, e não se pode dizer que na África existam vários brasis nem que o Brasil seja uma repetição da África. Isso reforça o que estamos afirmando: os elementos culturais formam cada sociedade específica.
Além disso, precisamos ter claro, como sugere Berges e Luckmann (2004), que embora as realidades tenham existências independentes da vontade humana, são percebidas de forma subjetiva. “A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um todo coerente” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 35). Em razão disso podemos dizer que se a percepção é subjetiva sua interpretação também o será. Essa interpretação subjetiva está relacionada à consciência que o indivíduo tem do real que o circunda.
Outro elemento que não podemos deixar de ter claro é que ao falarmos de sociedade e de cultura estamos nos referindo a fenômenos tipicamente humanos. Trata-se de realidades humanas e, portanto, nosso olhar tem o ser humano como ponto de partida. É ele que produz cultura, sendo uma das manifestações culturais a vida social ou vida em sociedade. E aqui, novamente entra a afirmação da subjetividade:
“A consciência é sempre intencional; sempre ‘tende para’ ou é dirigida para objetos. Nunca podemos aprender um suposto substrato de consciência enquanto tal, mas somente a consciência de tal ou qual coisa. Isto assim, é pouco importando que o objeto da experiência seja experimentado como pertencendo a um mundo físico externo ou apreendido como elemento de uma realidade subjetiva interior”. (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 37)

A constatação inicial, portanto, é a existência do ser humano em suas diferentes características. O ser humano é uma realidade, mas é uma realidade que atua e interfere nos fenômenos e, ao mesmo tempo, produz indagações com vista na interpretação dos fenômenos da natureza e humanos. Tendo isso presente podemos nos colocar a seguinte indagação: O que é o ser humano? Que ser é esse que chamamos de humano? O que o caracteriza e o diferencia de outros seres existentes.


O Ser humano e outros existentes

O Ser Humano se percebe no mundo e se vê completamente diferente das demais realidades existentes. É ele quem dá sentido a existência dos existentes. Dá sentido porque pensa, porque se socializa e porque manipula os elementos da realidade, gerando cultura. Além disso, e sem entrar no mérito da discussão religiosa, pode-se dizer que o ser humano transcende à realidade humana.
Reflitamos essas afirmações.
Partimos de uma constatação: praticamente todas as correntes de filosofia, de sociologia, de antropologia procuram dar uma explicação para esta realidade à qual se chama de ser humano. Dessas explicações um ponto parece ser comum e sobre a qual as vozes se fazem unânimes: o fato do homem ser pensante.
Pensar não é só o que se pode entender etimologicamente, com a palavra, dizendo que o ser humano é capaz de pesar, avaliar, estabelecer valores. Esse pensar refere-se também à capacidade humana de fazer escolhas; aliás o ser humano avalia, justamente, para fazer escolhas. Portanto o ser humano é aquele que avalia, escolhe, e faz isso a partir de um processo reflexivo que exige uma postura introspectiva. Esta por sua vez deriva da capacidade de abstração. Na verdade quando dizemos diz que o ser humano é capaz de pensar pretendemos afirmar que ele é capaz de falar, ou de se comunicar a respeito das realidades com as quais não está em contato imediato. Ele pode representá-las, mentalmente e nisso se dá um processo de reflexão, pois se trata de “voltar a ver” o que não está presente.
Outra característica do ser humano é a da sociabilidade. Daí vem a clássica afirmação aristotélica dizendo que “o Homem é um ser social”. A sociabilidade, ou a capacidade de viver, sobreviver e existir em coletividade parece ser o que mais bem caracteriza o homem. Entretanto aqui precisa se fazer uma ressalva. Não nos parece que o ser humano seja, essencialmente, um ser social, mas se faz social a partir de suas necessidade e para superar seus medos e suas limitações em relação aos outros e em relação ao mundo.
Dizendo de outra forma: o ser humano é um ser sectário e tende a se isolar e a viver isolado. Socializa-se porque se percebe impotente diante da natureza, mais forte que ele. E, por ter medo de não sobreviver procura ajuda de outros seus semelhantes. Assim se faz sociável numa atitude tipicamente egocêntrica, medrosa e aproveitadora. Para fugir de seus medos e disfarçar sua fraqueza aproveita-se da fraqueza dos seus semelhantes. Assim sendo o viver em sociedade é apenas uma forma de o homem se preparar para se isolar depois de se aproveitar das fraquezas dos outros seres, como ele, fracos e medrosos. Afinal, o que é nosso lar, se não nosso esconderijo?
Sobre a essencialidade má, do ser humano, podemos acrescentar estas palavras de Nietzsche, dizendo que:
“É verdade que repugna à delicadeza, mais ainda, a hipocrisia de animais domesticados (quero dizer os homens modernos, quero dizer nós) representarem-se com todo o rigor até que ponto a crueldade era alegria festiva na humanidade primitiva e entrava como ingrediente em quase todos os seus prazeres; por outro lado [...]. Indiquei já de maneira circunspecta a espiritualização e a ‘deificação’ da crueldade que não cessa de crescer e atravessa toda a história da cultura superior.” (NIETZSCHE, 2005, p. 64)
E logo a seguir o pensador alemão acrescenta: “ver sofrer; faz bem; fazer sofrer melhor ainda: ai está um duro princípio, mas um principio fundamental antigo, poderoso, humano, demasiadamente humano” (NIETZSCHE, 2005, p. 64). Sem sofrimento e sem provocar dor, o ser humano não produz outra de suas conquistas, coletiva, mas que tem sabores individuais: o progresso. Podemos dizer que foi a partir da dor e do sofrimento que nasceram a maioria das inovações produzidas pelo engenho humano.
Mas não vamos, também, entrar na questão do progresso humano. Progresso resultante da vida social, da superação dos medos e dos desafios. O progresso humano pode ser visto como resultado da capacidade humana de resolver problemas (capacidade reflexiva-pensante) e de se associar a outros homens para fortalecer suas fraquezas diante das realidades mais fortes e que demandam inteligência (ler o interior das realidades) e ação conjunta.
É neste ponto que entra a discussão sobre o sentido da produção humana. O homem aparece, portanto como um ser que gera cultura. Ou seja, diferentemente de outras criaturas, o homem se autoproduz reproduzindo o meio que o circunda. Mais do que isso, recria o mundo natural que o circunda e ao mesmo tempo recria o já criado, dando-lhe novo significado. Não se prende ao que está pronto, mas está sempre re-significando as realidades mesmo as que já possuem significado; recria a utilização e a utilidade das realidades mesmo aquelas que já tem significado e utilidade consagrada.
É graças a essa capacidade re-criadora que o homem pode produzir o mundo e reproduzir o que existe. Com isso dinamiza não só sua existência como as realidades que o circundam e a seus concidadãos. E assim está sempre criando ou re-criando a cultura. A cultura que, talvez, esta sim, seja uma das marcas mais tipicamente humanas, pois é principalmente pela sua capacidade de recriar o mundo e a cultura que o homem se diferencia dos demais existentes. Pela cultura e como manifestação cultural, ocorre, também, o processo associativo que é a vida social ou a sociedade.

O ser humano e a pluralidade das relações

Não se trata, aqui, de esgotarmos a discussão a respeito da natureza humana, mas de constatarmos algumas de suas características. E dizer que o ser humano pode ser caracterizado de várias formas, não significa dizer que ele seja ambíguo, mas plural; nessa pluralidade de interfaces a dimensão sociável é uma de suas características mais marcantes e visíveis.
Na pluralidade que é o ser humano podemos constatar que ele é, simultaneamente, sociável, mas tende ao individualismo; solidário, mas tende ao egoísmo; capaz de atos bondosos, mas tende para a maldade; capaz de atos altruístas, mas tende para a crueldade; capaz de atos heróicos, mas tremendamente medroso. Percebe-se com potencialidades transcendentes, mas limitado em sua manifestação material. “Os seres humanos variam em conseqüência das condições sociais, econômicas, políticas, históricas em que vivem” (CHAUI, 2005, p. 244). De acordo com essa afirmação podemos concluir que o ser humano é resultante de vários elementos condicionantes. Como já dissemos, a objetividade das relações sociais se impõem sobre as relações humanas, pois “o ser humano vive em conseqüência”, de vários elementos condicionantes que o levam a ser o que aparenta ser; mas também lhe fazem ser o que oculta.
E se quisermos usar uma linguagem Nietzschiana podemos dizer que o ser humano é um desconhecido. Tanto é desconhecido de si mesmo, como para o outro. E, paradoxalmente, desconhece a si, mas pretende conhecer aos outros. Pretende lançar-se na empreitada de conhecer o outro para fugir de si?
“Depois dos acontecimentos, perguntamos, tolamente estupefatos e desconcertados: ‘o que está acontecendo conosco? Quem somos realmente? E depois contamos, como foi dito, as trêmulas horas de nossa experiência vivida, de nossa vida, de nosso ser, ai de nós!, nos enganamos na conta... É que somos precisamente estranhos a nós mesmos. Não nos compreendemos, temos que nos confundir com os outros, estamos eternamente condenados a esta lei: ‘não há ninguém que não seja estranho a si mesmo’; nem a respeito de nós mesmos somos ‘homens de conhecimento’” (NIETZSCHE, 2005, p. 13).
A questão, agora, é saber aonde isso nos vai levar?
A dois pontos extremos: a uma distância cada vez maior de nós mesmos e a nos escondermos na sociedade. O que somos para nós mesmos? Uma incógnita. Quando nos perguntam, somos capazes de fazer várias afirmações sobre nós mesmos. Mas são sempre afirmações aproximativas, pois não conseguimos dizer tudo de nós, pois não temos desejo de nos apresentarmos, nem a nós nem ao outro. O que é a sociedade, para nós? Um esconderijo. É onde podemos existir sem nos mostrarmos, pois o que mostramos não somos nós; o que mostramos é apenas uma fachada para nos mantermos ocultos no meio da multidão.
E se quisermos ouvir uma palavra da psicologia, podemos dizer que a relação do ser humano consigo mesmo e com os outros manifesta-se em quatro quadrantes, formando uma espécie de janela (FRITZEN, 2000). Nessa janela há uma abertura livre e acessível ao “eu” e o “outro”; há uma segunda abertura conhecida pelo “eu” e desconhecida pelo “outro”; num terceiro quadrante a abertura permite que o “outro” conheça aspectos do “eu” que esse “eu” desconhece. E, por fim, o quarto quadrante refere-se a uma área obscura da qual nem o “eu nem o “outro” têm conhecimento ou controle. Isso também ajuda a confirmar o universo de desconhecimento que é o ser humano, pois como diz um verso de uma música de R. Seixas. “cada cabeça é um mundo”. Isso ajuda a explicar esse emaranhado de possibilidades que é o ser humano.
Mas o fato é que nossa individualidade se relaciona com outras individualidades e nisso se manifesta uma vida social. Trata-se de constante interação em que nossa subjetividade interage com outras subjetividades, de forma objetiva. Podemos dizer que as relações são objetivas, mas as intenções que produzem as relações e que se ocultam por trás das relações são subjetivas. A intencionalidade de cada um é desconhecida pelo outro. E aqui, novamente, nos valemos das palavras de Berger e Luckmann (2004) quando afirmam que a realidade da vida cotidiana:
“Apresenta-se a mim como um mundo intersubjetivo, um mundo de que participo juntamente com outros homens. Esta intersubjetividade diferencia nitidamente a vida cotidiana de outras realidades das quais tenho consciência. Estou sozinho no mundo dos meus sonhos, mas sei que o mundo da vida cotidiana é tão real para os outros como para mim mesmo. De fato não posso existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação com os outros. Sei que minha atitude natural com relação a este mundo corresponde à atitude natural dos outros, que eles também compreendem as objetivações graças às quais este mundo é ordenado, que eles também organizam este mundo em torno do ‘aqui e agora’ do seu estar nele. Sei também, evidentemente, que os outros têm uma perspectiva deste mundo comum que não é idêntica à minha. Meu ‘aqui’ é o ‘lá’ deles. Meu ‘agora’ não se superpõe completamente ao deles. Meus objetivos diferem dos deles e podem mesmo entrar em conflito”. (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 40, grifo nosso).
Tudo isso para demonstrar que o ser humano é um ser que, se relaciona, mas, ao mesmo tempo, procura se isolar. E se “meus objetivos diferem dos deles” posso dizer que meu mundo também é distinto. Podemos dizer que, mesmo estando no mesmo mundo objetivamente falando, vivemos em mundos diferentes.

O ser humano é diferente.

O ser humano é dotado de uma capacidade criadora e recriadora que lhe permite não só manipular o mundo, mas, principalmente recriar o mundo. Diferentemente do animal que possui apenas uma inteligência concreta o ser humano desenvolve e se desenvolve a partir de uma inteligência abstrata. Graças a ela o ser humano reproduz experiências, inventa novas utilizações para os mesmos objetos. Cria as técnicas e as capacidades de reaproveitar e recriar suas ações e produções. E com tudo isso transforma o mundo e se transforma com o mundo. Por tudo isso o ser humano se renova, constantemente; é outro a cada instante.
As ações do ser humano são temporais. Isso implica dizer que as ações humanas são históricas, pois mesmo morrendo um homem, suas experiências e suas realizações permanecem e podem ser reaproveitadas, recriadas, reformuladas por outros homens. Mesmo os que não são seus descendentes podem utilizar seus saberes. O ser humano, portanto, consegue visualizar o fato, as realizações e as produções num antes, no agora e num depois.
Neste aspecto vale a pena recordar os versos da música “Canto para minha morte” de Raul Seixas e Paulo Coelho:
Oh morte, tu que és tão forte, que matas o gato, o rato e o homem
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu porque eu continuarei neste homem
Nos meus filhos, na palavra rude que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite...
(SEIXAS; COELHO, 1976, grifo nosso)

A partir de experiências do passado o homem analisa seu agora e projeta o futuro. Faz isso por que consegue representar as realidades pela linguagem e pelo pensamento abstrato. Mesmo não tendo acesso ao passado e sabendo que o futuro é uma interrogação, mediante a linguagem recria as realidades, comunicando-as e por meio do pensamento abstrato recria as realidades criando modelos que podem ser transformados e reinterpretados. Essas transformações produzidas pelo pensamento e pela ação histórica é o que chamamos de cultura. O homem, portanto, ao recriar seu mundo produz cultura. Produz valores culturais ou bens culturais. Criando, inclusive, um importante elemento cultural que é a vida social. Nas palavras de Aranha e Martins (1997), ocorre que “as diferenças entre o homem e o animal não são apenas de grau, pois, enquanto o animal permanece mergulhado na natureza o homem é capaz de transformá-la, tornando possível a cultura” (Aranha; Martins, 1997, p. 6. grifos no original).
Mas não é só. A ação humana, produzindo cultura, produz realidades a partir de intencionalidades: uma dessas criações intencionais é o trabalho. Enquanto a ação humana, produzindo cultura por meio do trabalho, que é uma ação intencional, os animais não são capazes nem ao menos de trabalhar, pois não são guiados por intenções, pois lhes falta a vontade e a capacidade de decidir. Por isso dizemos que as ações animais não se reproduzem. O ser humano, por seu lado, transforma o mundo pelo trabalho e sua ação transformadora é conduzida pela intencionalidade; age com finalidade consciente.
Outra característica do ser humano e da ação humana é a consciência da pertença a um grupo. A ação humana não se dá isoladamente. A produção cultural e o trabalho humano são ações sociais. Mesmo que, como já dissemos, sejamos movidos por interesses egocêntricos, tendemos a realizar nossos desejos e necessidades em conjunto com outros.
O ser humano é um ser social, sociável e solidário. Social por que não vive só, mas em bandos, chamado de sociedade; e necessita dela para sobreviver. Sociável por que consegue manter relações com outros de sua espécie, mesmo com eventuais adversários; mesmo que seja para tirar proveito pessoal dessas relações. Relações que são, ao mesmo tempo, conscientes e intencionais. Por isso, também, o ser humano é solidário. Não por benevolência, mas por necessidade. Por que sabe que necessita dos outros o ser humano age em troca de benefícios. Faz ao outro para que o outro retribua. E nisso, mais uma vez, aparece a intencionalidade. Mesmo que a solidariedade seja interesseira, ela caracteriza a ação humana.
A ação humana, que é trabalho e que é cultura, e que não se esgota no tempo, pois permanece na ação intencional de outros seres humanos, se dá pela assimilação de modelos sociais estabelecidos. O ser humano é o que é, mediante a cultura, que é resultante do trabalho. O ser humano desenvolve-se dentro de um grupo que já possui valores aos quais considera válidos e que acha necessário que sejam preservados. Por esse motivo, para transmitir esses valores, essas informações, esses saberes para os demais ou para os mais jovens, o ser humano cria instrumentos e canais de comunicação. O ato ou o processo através do qual os seres humanos se comunicam e comunicam seus valores e os elementos culturais é o processo educacional.
O mundo humano, portanto, que não existe independentemente do ser humano, é um mundo de significados e como tal precisa ser, ao mesmo tempo recriado, ressiginificado e transmitido. O mundo humano só existe enquanto existe o ser humano e por isso ele é constantemente recriado, como cultura e como valores a serem transmitidos às novas gerações. Por isso o ser humano dá tanta importância à educação, pois ela é um dos principais meios de recriação do mundo: recria a sociedade e a cultura.