(Apontamentos provisórios para aulas de filosofia)
Prof. Ms. Neri de Paula Carneiro neri.car@hotmail.com
Existem alguns meios que podem facilitar o estudo da filosofia, em sala de aula, com estudantes do ensino médio? Essa mesma concepção vale para o ensino superior?
Uma das formas de responder a essas indagações é a constatação de que a filosofia volta sua atenção sobre todas as realidades. Outra forma de estudar filosofia é buscar suas origens. Esta é nossa preocupação com este pequeno texto buscar resposta para as indagações que nos ajudem a entender quem faz filosofia e sua origem e desenvolvimento, até chegar a nós.
1- QUEM FAZ FILOSOFIA?
Esta é uma questão com resposta aparentemente fácil. Sabemos que filosofia é um processo de busca de conhecimento; um processo pelo qual se reflete a realidade. Tendo isso presente fica quase evidenciada a resposta: o ser humano é quem faz filosofia.
Mas quais seres humanos? Todos?
Não!
Não são todos os seres humanos que fazem filosofia. Todos podem, mas nem todos fazem. E isso por um motivo simples: A filosofia é um processo de busca de conhecimentos, mas nem todos estão preocupados em buscar. Muitos aceitam e se acomodam na mediocridade. (“Sempre foi assim, nunca vai mudar!”, dizem alguns, no que são secundados por outros: “pau que nasce torto, morre torto!”).
A filosofia é um processo de crítica da realidade, mas nem todos estão interessados em desenvolver ou passar por esse processo. Muitos aceitam e se acomodam à realidade tal qual ela se apresenta; não querem nem procuram mudanças (deixa como está para ver como é que fica!).
A filosofia é um processo de pensar (a palavra pensar tem o mesmo sentido de pesar, estabelecer valores, avaliar) todas as realidades, mas nem todos estão dispostos ou com pré-disposição para isso. Muitos preferem ser pensados, e conseqüentemente aceitam ser manipulados, conduzidos (possuem uma "consciência de rebanho"), pois quem não pensa é pensado! Quem não tem rumo segue o rumo que lhe é imposto.
Agora leia o que disse K. Jasper, filósofo alemão, que viveu no século XX, a respeito de como a filosofia é vista:
“Muitos políticos vêem facilitando seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligência de rebanho, É preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensinem, menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia.
Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário – tudo isso proclama a antifilosofia. E os homens não o percebem porque não se dão conta do que estão fazendo. E permanecem inconscientes de que a antifilosofia é uma filosofia, embora pervertida, que, se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação.” (JASPER, 1973, p. 139-140)
Para ajudar a entender melhor isso que estamos dizendo, vamos ler o texto seguinte:
a- A História dos Cordeiros
“Os cordeiros viviam felizes numa fazenda. Pastavam, andavam de um lado para outro. Acreditavam que eram livres e felizes, pois assim se comportavam, correndo dentro do cercado que acreditavam ser sua casa.
Diariamente o pastor lhes alimentava, cuidava deles e todos os cordeiros seguiam o pastor. O pastor os chamava; conhecia-os pelo nome conduzindo-os para onde lhe aprazia.
Todos os dias os cordeiros entravam na fila para se dirigir ao cercado, onde o pastor os alimentava, dava sal, acariciava seus pelos; de vez em quando era necessário um medicamento e ele lhes aplicava. No tempo do calor o pastor os tosquiava. E todos achavam aquilo maravilhoso, pois a lã, que lhes cobria o corpo, era muito quente.
Quando estavam soltos, no pasto, dentro do cercado, vinha o pastor e os chamava:
- Venham meus cordeirinhos. Sigam-me. Entrem na fila meus cordeirinhos.
E o pastor os condizia para onde achava conveniente:
- Venham meus cordeirinhos. Sigam-me. Entrem na fila meus cordeirinhos.
E todos o seguiam. Ele era seu líder e todos o admiravam.
- Venham meus cordeirinhos. Sigam-me. Entrem na fila meus cordeirinhos. Entrem no cercado, meus cordeirinhos.
Houve um dia, entretanto, em que ao ritual foi acrescentada uma longa permanência no cercado. Alguns até acharam estranho, mas o pastor, seu líder assim o fizera e eles se acalmaram:
- Calma, meus cordeirinhos. Fiquem calmos dentro do cercado.
E os cordeirinhos ficaram calmos, pacificamente, na mangueira. O pastor os tosquiou e lhes disse:
- Esperem mais um pouco meus cordeirinhos. Hoje não vou lhes soltar para o pasto.
Os cordeiros viram uma movimentação diferente. Mas acreditavam no pastor que veio novamente:
- Vamos meus cordeirinhos, entrem no caminhão. Vocês vão dar um passeio.
Os cordeiros ficaram alegres e disseram, lá na língua deles:
- Oba, hoje vamos passear! O pastor nos deu um prêmio pela nossa produção.
Como os cordeiros, todos calmos, e pacíficos, nunca se revoltavam. Nunca haviam pedido para ir à escola, conseqüentemente não aprenderam a ler.
E foram passear no caminhão em que estava escrito: Frigorífico.”
Uma das conclusões que se pode tirar dessa historinha é que devemos, sempre, nos perguntar sobre o sentido e os porquês das realidades que nos circundam.
Filosofar é um ato e processo humano. O Ser Humano é humano por que é capaz de refletir. É pela reflexão que se faz filosofia. Acontece que nem todos se ocupam em refletir. Nem todos se humanizam pela reflexão. Existem aqueles que preferem alienar-se ou estão alienados (fora da realidade) sem perceber os meandros das falsas aparências.
Portanto, para saber quem é capaz de filosofar precisamos descobrir quem é capaz de:
a) formar as próprias opiniões, ultrapassando o convencional e convencionado;
b) agir, movido pelas próprias convicções deixando de fazer o que está previsto só por que está previsto;
c) distinguir-se dos que aceitam ser manipulados pelas maiorias, ou minorias dominantes, apenas para não criar conflito;
d) buscar sua verdade, ultrapassando os limites das maiorias.
Além disso, aqueles que se escondem no chavão: "se os outros fizerem, eu também faço", "se vocês forem, eu também vou", não são capazes de filosofar. Aqueles a quem chamamos de "Maria vai com as outras”, os que sempre estão "de acordo com a maioria", são incapazes de filosofar: ou por que estão alienados ou por medo. Os que preferem esconder-se no discurso da "maioria", não são capazes de filosofar porque perderam sua personalidade no discurso do "outro". E serão incapazes de agir por si mesmos, enquanto não se derem ao trabalho de falar por conta própria; fazer o próprio discurso. Podemos dizer que o apego ao "discurso da maioria", é demonstração inequívoca de despersonalização, incapacidade intelectual, declaração de desumanização.
Isso não significa que devamos sempre “ser do contra” só pelo gosto de protestar. Essa também é uma demonstração de imaturidade. Se for para ser “a favor” precisamos ter os nossos motivos e não o impulso da “maioria”. Ser “a favor” ou “contra” depende não do que os outros disserem ou fizerem, mas da análise que o indivíduo deve fazer, refletindo e pesando os prós e contras. É da reflexão que nasce a decisão.
Se alguém se mantém preso à "opinião da maioria" é por que não se libertou para emitir a própria opinião. E, se não tem opinião, não tem capacidade de pensar, pois a opinião pessoal origina-se da reflexão, da leitura que fazemos da realidade circundante. Manter-se com a opinião da maioria é não saber ler a realidade e, portanto, permanecer analfabeto ao mundo... É permanecer na ignorância, com opiniões equivocadas.
Assim sendo, para saber quem é capaz de filosofar, precisamos saber quem se dá ao trabalho de refletir sobre a realidade, superando as amarras da ingenuidade, da compreensão mítica, da alienação, do senso comum, impondo-se a tarefa da análise em busca de conclusões pessoais. Precisamos saber quem é capaz de fazer algo não por causa da maioria, mas porque refletiu, pesou os prós e contras e, para se desinstalar, assumiu a posição que era necessária, não por causa da maioria nem por conveniência pessoal, mas por imperativo racional.
E o erro de julgamento? Como explicar os equívocos?
Faz parte do processo de busca. Nunca acontece acerto total. Os erros fazem parte da aprendizagem. Só erra quem busca o acerto. Tanto que, para quem se coloca numa posição de aprendiz, é possível aprender tanto com os erros quanto com os acertos.
A historinha, a seguir, sobre erros e acertos, pode nos ajudar a entender melhor a necessidade de busca:
b- Erros e acertos
“Um velho pesquisador passou a vida toda buscando uma grande descoberta. Mas seus experimentos sempre davam errado.
Um dia chegou ao seu laboratório um jovem pesquisador.
Todo empolgado, começou a encaminhar seus experimentos.
O ancião o observava. Até que se dirigiu ao novato:
- Isso que você está fazendo, dessa forma, não vai dar certo.
Ao que o outro responde.
- Quem é você para me corrigir? Você não sabe de nada, passou a vida fazendo pesquisas que nunca deram o resultado desejado.
O veterano:
- Exatamente por isso sei que dessa forma não dará certo. Eu já errei exatamente nesse ponto onde você está. Quer acertar, busque outro caminho.”
E, se quisermos um pouco mais de arrojo, podemos dizer que a filosofia é o processo pelo qual o animal, que se autodenomina racional, faz-se homem. Aquele que se admira diante da realidade, procurando compreendê-la e dominá-la, esse é o ser humano capaz de filosofar. Abrir-se ao processo de busca, estar inquieto, buscando alternativas, esse é o processo do filosofar, próprio do ser humano que não se acomoda. Enfrentar, com otimismo e coragem, as adversidades, é o caminho do filosofar. Os problemas, as dificuldades, são apenas respostas ainda não apresentadas, mas que nascerão da reflexão do ser humano.
Refletir é curvar-se diante do desconhecido buscando compreendê-lo e dominá-lo. Não é demais dizer que foram as facilidades, mas os problemas que permitiram a humanidade chegar onde está. Não fossem os problemas e a capacidade reflexiva, que dá resposta aos problemas, o ser humano ainda estaria nas cavernas. Talvez nem tivesse se transformado em Humano.
Fechar-se ao processo é alienar-se. Aniquilar-se. Desumanizar-se. Até deixar de ser humano para tornar-se, talvez, uma utilíssima minhoca.
2- DO MITO À FILOSOFIA
O ser humano sempre esteve preocupado e ocupado em conhecer e explicar a realidade.
Nos primórdios da humanidade todas as realidades, particularmente a natureza, eram muito mais inquietantes, desafiadoras, assustadoras e complexas para os primeiros homens: tudo era completamente desconhecido. Podemos dizer que nos primórdios o sentimento do ser humano em relação ao mundo era de medo.
Era, portanto, necessário, explicar o mundo para superar o medo. A complexidade do mundo circundante, ao longo de milhares de anos, possibilitou aos diferentes grupos humanos produzir diversas explicações mítico-religiosas. Podemos dizer que o medo foi cedendo lugar ao mito e à religião. Esse processo perdurou até o advento da filosofia, mas não se extinguiu completamente, pois ainda hoje somos levados a explicar miticamente aquilo para o quê não temos explicações lógico-filosófico-científica.
Eis o que diz um pensador alemão que viveu no século XIX, a respeito do desconhecido:
“Reduzir uma coisa desconhecida a outra conhecida alivia, tranqüiliza e satisfaz o espírito, proporcionando, além disso, um sentimento de poder. O desconhecido comporta o perigo, a inquietude, o cuidado – o primeiro instinto leva a suprimir essa situação penosa. Primeiro princípio: uma explicação qualquer é preferível à falta de explicação. Como, na realidade, se trata apenas de se livrar de representações angustiosas, não se olha de tão perto para encontrar os meios de chegar a isso: a primeira representação, pela qual o desconhecido se declara conhecido, faz tão bem que ‘é considerada por verdadeira’. Prova de prazer (da força) como critério de verdade. – o instinto de causa depende, pois, do sentimento de medo que o produz” (Nietzsche, 2005, p. 47)
A busca de tranqüilidade, de poder, para se contrapor ao medo, fez nascerem todas as explicações, desde a mítico-religiosa até a filosófico-científica. Do ponto de vista cronológico houve um período a partir do qual a interpretação Mítico-Religiosa cedeu lugar à explicação Filosófico-Científica. Mas para chegar a isso foram necessários muitos séculos de reflexão e tentativas de superação do medo.
Os primeiros seres humanos viam e conviviam com fenômenos que não entendiam. A primeira reação, sempre, era o medo. Mas, em seguida, sentiam a necessidade de entender suas causas e seus significados. Devemos nos lembrar que eles não possuíam os aparatos e os resultados que hoje a ciência oferece. Assim, aparelhado apenas com sua capacidade reflexiva, carregada de medos, os primeiros humanos desenvolveram várias explicações. Criaram mitos e religiões; deuses e demônios. Por isso surgiram tantas e diferentes explicações para as mesmas realidades..
Podemos dizer que todos os povos antigos utilizaram os mitos para explicar aquilo que não podiam compreender imediatamente, que representava perigo ou causava medo. Essa perspectiva mítica pode ser encontrada nos povos da Mesopotâmia, do Egito, como também entre as diversas nações indígenas da América pré-Colombiana. Em nossa sociedade são mais conhecidos os mitos criados pelos hebreus, descrevendo, na Bíblia, a criação do mundo, da natureza, do ser humano.
Nestas alturas você está se perguntando: o que é Mito e como ele se caracteriza?
Os mitos podem ser vistos como as primeiras tentativas que o ser humano fez para explicar fenômenos: da natureza e humanos; que lhe infundiam medo ou diante dos quais intuía a necessidade de respeito. Essas explicações, os mitos, podem ser caracterizados como uma explicação em que aparecem elementos religiosos, fantásticos e tem caráter explicativo. Nisso eles se diferenciam das lendas que são narrativas culturais e folclóricas.
Para entender melhor o caráter explicativo dos mitos, vamos ler uma breve caracterização de antigas narrativas míticas.
a- Mitos hebraicos e Mesopotâmicos.
Hebreus e Mesopotâmios elaboraram seus mitos para explicar a ação divina criando o mundo. Entre os Mesopotâmios desenvolveram-se várias narrativas explicando as origens do mundo e do homem. O mesmo veremos entre os hebreus que parece terem sido influenciado pela mitologia mesopotâmica. As narrativas bíblicas, principalmente no livro do Gênesis, podem ser vistos como uma espécie releitura dos mitos mesopotâmios. Isso se explica porque as origens dos hebreus remontam a migrações de Mesopotâmicos para a Palestina (da atual região do Iraque para o atual Israel). Entre os hebreus, no texto da Bíblia podemos ler mais de uma narrativa para o mesmo fenômeno, como é o caso da narrativa da criação do mundo e do ser humano.
Vamos comparar o mito babilônio da criação, traduzido por P. Grelott, com o mito bíblico. No mito mesopotâmico (babilônico) a criação se dá a partir do combate entre duas divindades Marduque e Tiamate. Depois de uma batalha Marduque aprisiona Tiamate e o matando-o em seguida. Com o sangue dessa divindade morta Marduque, o deus criador, forma o mundo e as pessoas.
Vamos ler isso de acordo com a tradução de P. Grelot, contando a criação dos Deuses, depois do mundo e dos seres humanos:
“Quando lá no alto, os céus ainda não eram nomeados e aqui em baixo a terra ainda não tinha nome; quando o primordial Apsu, seu criador, e a genitora Tiamate, que os gerou a todos, misturavam suas águas; quando os fardos de junco ainda não eram empilhados e os bambuais não eram visíveis; quando nenhum deus ainda tinha aparecido, nem recebido um nome, nem suportado nenhum destino, então, do seu seio, nasceram deuses.
[...]
Marduque assegurou seu domínio sobre os deuses acorrentados e voltou-se para Tiamate, que ele tinha vencido.
Com sua dava inexorável, fendeu-lhe o crânio.
Acalmado, o senhor contemplou o cadáver (de Tiamate): do monstro partido ele queria fazer uma obra-prima. Ele o separou em dois como um peixe seco; estendeu a metade para formar a abóbada dos céus, traçou o limite, colocou guardas e lhes ordenou que não deixassem sair as águas.
[...]
Marduque, ouvindo o apelo dos deuses, resolveu criar uma obra-prima. “Farei canais de sangue, formarei uma ossatura e suscitarei um ser, cujo nome será: homem. Sim, vou criar um ser humano, um homem!
Que sobre ele recaia o serviço dos deuses, para o bem-estar deles!” (Grelot, 1980, p. 30).
Como ocorre a criação do ser humano? Na mesma narrativa temos a resposta. Depois de uma batalha entre os deuses, um deles é imolado:
“Eles o acorrentaram e o seguraram diante de Eia infligiram-lhe o castigo merecido, cortando suas veias. Com o seu sangue, Eia criou a humanidade, e lhe impôs o serviço dos deuses, para libertá-los. Depois que Eia, o sábio, criou a humanidade e lhe impôs o serviço dos deuses, obra superior a toda inteligência, que realizou Nudimude, graças aos artifícios de Marduque.” (Grelot, 1980, p. 31)
Como podemos observar, os deuses mesopotâmicos estavam em constantes atritos. Na mitologia hebraica, na Bíblia, é um pouco diferente. Há apenas uma divindade agindo e criando os céus e o ser humano. Os hebreus apresentam uma divindade poderosa criando pela palavra, pacificamente.
Agora, sem entrar no mérito religioso, mas tomando os textos apenas como literatura, compare as semelhanças e diferenças entre o mito Bíblico e o mito Mesopotâmico. Vamos tomar, aqui apenas alguns versículos do capitulo I, do Gênesis (Gn, 1, 1-8; 26-28):
“No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo e um vento de Deus pairava sobre as águas.
Deus disse: "haja a luz" e houve luz.. Deus viu que a luz era boa e separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz de "dia" e às trevas de "noite". Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.
E Deus disse: "haja um firmamento no meio das águas e que separe as águas das águas" e assim se fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento. Deus chamou o firmamento de “céu” houve uma tarde e uma manhã: segundo dia.
[...]
Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem como nossa semelhança, e que eels dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”.
Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou.
Deus os abençoou e disse: “sede fecundos, multiplicai-vos enchei a terra e submetei-a” (Bíblia de Jerusalém, 1989)
Outra comparação a ser feita, para visualizar outra narrativa mítica, é do capítulo 2, 4-25. Se olharmos os textos sem os preconceitos religiosos, observando apenas sua beleza literária, podermos observar que se tratam de narrativas distintas e com ordem diferente no processo criacionista. Poderemos ver que povos distintos e em tempos diferentes, apresentaram explicações diferenciadas sobre o mesmo fenômeno: a origem do mundo e do ser humano. Isso não invalida as crenças que cada um possa ter, mas ajuda a alargar os horizontes do conhecimento.
Como eu sei que você é esperto, sei que está se perguntando: qual é a relação do mito com a filosofia?
Alguns chegam a afirmar que o mito dá uma explicação falsa enquanto a filosofia apresenta uma explicação verdadeira, mas essa parece ser uma opinião equivocada. Assim podemos dizer que tanto a Filosofia como o mito têm a preocupação de explicar. Mas fazem isso com linguagens diferentes; podemos dizer que são dois níveis diferentes de abordagem de uma mesma realidade. Pode-se perguntar, então, o que diferencia essas duas abordagens?
Veja o que Fedro, escritor romano do século I aC, em suas Fábulas, diz a respeito dos mitos:
“Devemos atentar para o significado e não para as palavras.
A lenda de Ixião em cima de uma roda em movimento é símbolo da Fortuna que sempre se transforma e nunca repousa. Sísifo, contra a montanha, empurra, com suores, a pedra, que do cume rola sempre para baixo, anulando todo o trabalho. Isso representa a infinda miséria do homem. Tântalo, com sede, em meio a um rio, é o avarento ao qual os bens da vida lambem, mas não o envolvem. As criminosas Danaides, que carregam água, eternamente, não logram encher as jarras perfuradas.
Eis aí a luxuria que, enquanto algo dá, também esbanja.
Tácito, por nove jeiras foi sacrificado, tendo o fígado inchado com acréscimo de sofrimento. Isso revela que quanto mais bens possuir, maior angústia daí advém. Os antigos revestiam a verdade com mitos a fim de ensejar entendimento ao sábio e equívoco ao ignorante.” (Fedro, 2006, p. 105).
A explicação mítica caracteriza-se pelo subjetivo, pelo religioso, pelo fantástico e simbólico. Sua estruturação lógica não se fundamenta na veracidade, mas nas suas em sua simbologia e no fim a que se destina: dar uma explicação. Não importa se essa explicação é parcial, limitada ao tempo e às contingências do volume de conhecimento que se tem no momento específico. O valor da explicação mítica encontra-se na sua própria lógica simbólica, abrindo-se às diversas interpretações. Aceita-se ou não o mito a partir de seus elementos internos.
A explicação da filosofia baseia-se na força dos raciocínios argumentativos, racionais, impessoais. O valor da explicação filosófica fundamenta-se na coerência e na razoabilidade. A filosofia se faz a partir dos argumentos que são aceitos pela sua coerência ou refutados a partir de outros argumentos, também lógicos, coerentes e razoáveis.
A questão é saber como se dá a passagem da era mítica para o tempo da filosofia. Pode-se dizer que todos os povos, em todas as épocas desenvolveram alguma "filosofia" e algum mito, pois todos os povos procuraram, a seu modo, explicar a realidade e o mundo. Mas o que hoje os livros e as escolas chamam de filosofia, que está presente nas faculdades, nas escolas de nível médio e mesmo fundamental, desenvolveu-se aproximadamente a partir do século VII aC. no mundo grego, quando as explicações míticas tornaram-se insuficientes, limitadas e mesmo contraditórias. Isso levou os pensadores a buscarem outras explicações que tivessem por base não mais o mito, a religião, o fantástico, mas a observação objetiva dos fenômenos, a classificação das respostas, a comparação de resultados, a racionalização dos enunciados. A base, antes religiosa-mítica desloca-se para um plano racional-lógico. Esse processo aconteceu, principalmente por que os gregos começaram a comparar, as culturas dos diferentes povos: respostas diferentes, de povos diferentes, para os mesmos fenômenos, geraram um ponto de interrogação. Nascia a crítica à resposta mítica.
Com isso não se pretende dizer que a filosofia nasceu para acabar com o mito, ou que durante o período em que as respostas eram míticas não houvesse filosofia. Em sentido lato, toda vez que alguém desenvolve alguma reflexão, está "filosofando". Portanto o próprio processo de criação dos mitos era um processo "filosófico". E como filosofia é um processo de crítica constante o "pensar mítico" passou pelo acrisolamento da razão, gerando o "pensar filosófico". Também não se pode dizer que a filosofia superou o mito, mas que veio como uma alternativa a ele. O gênio humano já não se satisfazia apenas com o mito. Precisava de maior profundidade, coerência e da possibilidade de ampliar os horizontes. E isso não era possível com o mito, pois este trazia uma resposta pronta e, ao mesmo tempo, subjetiva.
É bom dizer, também, que a preocupação da filosofia não era acabar com os mitos. Mesmo por que não existe apenas uma forma de se expressar uma verdade ou um ponto de vista. Assim sendo a "verdade" mítica pode conviver com a filosófica. Também precisa ficar claro que em nossos dias o leque de manifestações míticas é tão variado como são as abordagens filosóficas, sobre uma mesma realidade.
Resumindo podemos dizer que em um primeiro momento o ser humano explicou seu mundo a partir da religiosidade. Foi a fase mítica. Quando o mito começou a ser insuficiente desenvolveu-se a filosofia. E isso foi feito pelos Gregos.
E nos dias atuais, outro passo foi dado. Além das manifestações míticas do cotidiano e das correntes filosóficas que se desenvolveram, nasceram as ciências como mais uma forma de conhecer e manusear o mundo e os conhecimentos. Mas isso veremos numa outra oportunidade.
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Escala, [2005]
GOMES, Roberto. Critica da Razão Tupiniquim, 5 ed. São Paulo: Cortez, 1982
GRELOT, P. Homem, quem és? São Paulo: Paulinas. 1980.
FEDRO, Fábulas, São Paulo: Escala, 2006
JASPER, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1973
MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de filosofia, lições preliminares. 3 ed. São Paulo: Mestre Jou. 1967
Neri de Paula Carneiro
mestre em educação
Filósofo, Teólogo, Historiador
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22 comentários:
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