3 de ago. de 2007

Porrada II

Esta é uma segunda porrada que, evidentemente, vem depois da primeira. Mas a questão aqui não é a ordem das porradas a mas a desordem que as provoca.
Não entendeu? Pois explico!
Você é pai ou mãe. Seu filho ou filha de dois ou três anos faz uma peraltice. Você ri e diz: que gracinha? ou repreende o pimpolho e diz que isso não está correto?
Seu rebento cresce. Está agora com sete ou oito anos. Chega da escola com duas borrachas, sendo que uma delas você não comprou e, portanto, não é dele. Você quer saber de quem é? Como ele ficou com ela? E se descobre que é de um coleguinha manda devolver? Ou só diz que isso não se faz e deixa para lá? Ou nem isso! Você simplesmente ignora, afinal é só uma borracha?
Aos doze ou treze anos. Sua cria não fez a tarefa e o professor lhe chama a atenção. Seu anjinho que aos três anos fazia peraltice e você ria, aos oito chegava com uma borracha estranha e você não ligava, agora, aos doze anos, ao ser repreendido por não cumprir com uma obrigação, falta com o respeito ao professor. Você acha que o professor não poderia ter lhe chamado a atenção, na sala de aula ou você lhe manda pedir desculpas ao professor e fazer duas vezes a tarefa, para que aprenda a cumprir com suas obrigações e se tornar um ser humano?
Agora ele já tem quinze ou dezesseis anos. Você acha que seu filho ainda é muito novo para trabalhar e que deve apenas estudar e se divertir, principalmente por que você teve que trabalhar desde cedo e nunca teve muito tempo para estudar e curtir a vida? ou você procura uma atividade para seu filho. Cobra-lhe que cumpra com essa tarefa e que estude? Além disso, você tolera que seu filho chegue tarde da noite ao sair com os amigos para diversões que você não sabe qual nem onde é? ou você estabelece horários para chegar e quer saber onde e com quem ele irá?
Não sei o que você respondeu a estas situações imaginárias. Mas, mesmo imaginárias, são situações cotidianas para muitos pais e mães e filhos e professores em quase todas as escolas.
Se você se divertiu com a peraltice do seu filho de três anos. Não deu pelota para a borracha estranha em sua bolsa escolar, aos oito. Não o repreendeu quando faltou com o respeito ao professor aos treze, nem se preocupou com quem saiu, para onde foi e que horas voltou, aos dezesseis, prepare-se para uma possível má, notícia: Seu filho pode ser um dos que agride uma trabalhadora e, para se desculpar, diz que pensava que fosse uma prostituta. Seu filho pode ser um dos que corre comprar um litro de álcool para incendiar um índio e, para se desculpar, diz que pensava que fosse um mendigo. Seu filho pode ser um dos que têm tudo, mas não tem um pai e/ou uma mãe.
Claro, você dirá que seu filho não é um monstro!
Respondo: Todos nós somos monstruosos, principalmente quando estamos em bandos ou acossados pelos apelos de fortes emoções; principalmente quando se volta para casa depois de uma noitada com os amigos, tendo bebido, fumado ou cheirado não se sabe o quê.
Você dirá que seu filho é diferente.
Respondo que justamente por sermos diferentes é que, no bando, querermos ser iguais; é por isso cometemos absurdos.
Você dirá que nunca faltou nada para seu filho e que, por isso ele não tem motivos para se comportar maldosamente.
Respondo que nisso reside o grande problema. Pensar que não deixar faltar algo ao filho, dando-lhe tudo, é um erro. Nisso há dois equívocos, fatais: ele não tem que receber tudo, sem ter merecido. Além disso, dar coisas, sem estar presente, cobrando e oferecendo valores é uma forma de confessar que você não está sendo responsável pelo seu filho. Os presentes devem ser proporcionais às conquistas por méritos.
Claro que você não está sozinho na construção desse malfeitor. Você tem uma ajuda valiosa dos meios de comunicação. Você conta com o apoio de uma compreensão equivocada de preceitos da legislação. Você tem um sistema escolar mantido não pela valorização do respeito e da aprendizagem, mas da politicagem que persegue profissionais competentes e valoriza capachos. Você é auxiliado por políticas públicas que privilegiam as estatísticas e não a aprendizagem. E assim por diante.
Conversar com os filhos é bom? É evidente que sim. Mas deixar de punir a peraltice, os erros, as malcriações, os excessos é conivência com a violência. É neste ponto que se separam os pais e os reprodutores.
Pais e mães são aqueles que se preocupam e procuram desenvolver valores socialmente aceitos. Reprodutores são aqueles que fazem ou o geram o filho e o abandonam aos cuidados de uma babá, depois o exilam numa creche, mais tarde o aprisionam na escola ao mesmo tempo em que o soltam nas ruas. Sabe o que acontece depois?
O fato é que a impunidade viceja. Espalha-se feito tiririca no canteiro de alface.
Por isso é que te convido a refletir sobre as porradas. Não aquelas que a grande mídia vem divulgando, quem sabe até tentando provocar uma discussão mais sadia não porque preserve valores, mas por que isso vende notícia e porque, por ser formada pela classe média-alta comece a se sentir ameaçada. Convido-te a refletir sobre as porradas que deixam de ser dadas, com o devido jeitinho carinhoso de quem é pai ou mãe e quer que seu filho não engrosse as estatísticas da violência.
Caso contrário, sabe onde isso vai dar? Porrada!

Neri de Paula Carneiro
Filósofo, Teólogo, Historiador

Um comentário:

Cátia disse...

Sou pedagoga e adorei o texto, é muito bom, nós enquanto educadores, temos que refletir sempre sobre valores, ética e moral, achei excelente.