3 de ago. de 2007

Vôo da Morte

A morte não está voando, nem é mortal o fato e o ato de voar. A expressão está sendo usada para designar aquele vôo fatídico do Rio Grande do Sul a São Paulo, provocando aquelas centenas de mortes.
Foi uma tragédia. A mídia se deliciou! Prato literalmente quente para várias semanas!
Os outros eventos e fatos e tragédias se dissiparam. Nem o aquecimento global se impôs àquelas cenas chamuscantes e fumegantes. O caso dos senadores larápios esfriou diante do calor da explosão! O PAN foi chamuscado pelo fogo da TAM. O record da TAM acabou recebendo mais destaque que os recordes do PAN
As cores da tragédia se tingiram de um avermelhado que nem de longe lembra aquele momento primordial em que os homens aprenderam a dominar o fogo e com ele iniciaram a epopéia do desenvolvimento. O fogo vital dos primeiros tempos se apagou diante do fogo mortal das explosões.
Mas a questão, aqui não é o fogo nem as explosões, nem o vôo, em si mesmo. Não estou interessado naqueles mortos nem em seus familiares. Da mesma forma que não estou interessado se a pista estava ou não escorregadia. Não me interessa se o avião estava com defeito, se o defeito foi na torre de comando nem se houve falha humana.
Que houve falhas, isso é obvio. Ou não haveria acidente. E com isso não estou querendo me mostrar insensível à dor nem à perda de pessoas queridas. Pelo contrário, esta é a motivação deste desabafo.
Apenas que nossa questão é outra. A questão aqui se refere a uma falha, sim, mas de ordem ética, de caráter, de humanidade.
Digo “nossa questão” é outra por que ela atinge a mim e a você. Atinge aos simples mortais que morrem de cotidiano abandono. Ao passo que aquele problema dos aeroportos, seus aviões e seus mortos representa casos esporádicos. E atinge alguns figurões. O povo mesmo, morre de outras mortes. Por isso o nosso problema é cotidiano:
A fila no hospital público, pago com nosso dinheiro de impostos, permanece matando;
O caos e o desmando na educação pública, aquela que pagamos mesmo sem querer, através da imposição dos impostos, continua matando perspectivas de desenvolvimento;
A assustadora insegurança da chamada segurança pública faz medo e produz pivetes matando a mando de figurões acoitados nas dobras da legislação ou da impunidade ou da negligência, ou do próprio fato de ser um figurão: “você sabe com quem está falando?”
O transporte, visto como vias ou como meios de transporte, também nos mata. As vias são um buraco só. Faltam placas de sinalização e marcadores no solo da pista; os meios de transporte, tanto público como privado são um caos: o carro popular, além de poluente é inacessível em seu preço estratosférico; o transporte coletivo é uma lástima. Tanto o busão de linha intermunicipal e interestadual como o urbano - a chamada circular – além de ser caro é desconfortável, irregular, não respeita o passageiro.
Aqui estão nossos problemas e essa é a questão: tudo isso é “coisa de pobre”. São os pobres que usam transporte coletivo, saúde pública, educação publica... Assim sendo, que se explodam! Mas quando a classe média e alta se explode num avião, a coisa pega. Ficam procurando culpados e justificativas. Mas não encontram o culpado pelas estradas esburacadas e sem sinalização; não encontram os responsáveis pelo caos do transporte coletivo, nem da incapacidade administrativa que gera as filas mortais na saúde pública; nem a estultice da educação publica. Será que a vida de uns é mais importante que a de outros ou é a morte de alguns que vale mais que a morte de outros?
Se um ônibus lotado cai numa “barroca” e mata todos os passageiros, o noticiário gasta alguns segundos para comentar o fato lamentável. Há poucos dias um noticiário da TV mostrou um caminhão saindo de sua pista atravessando o canteiro central e atropelando vários veículos e provocando congestionamento na estrada. Tudo isso é menos de 20 segundos. Ali também estiveram envolvidos e prejudicados várias dezenas de pessoas... Mas um avião lotado cai no meio da rua e explode com tudo e com todos, o noticiário se prolonga por algumas semanas. O defunto rico fede menos que o defunto pobre? O mau cheiro do defunto pobre é mais desagradável para as “fuças” sensíveis dos divulgadores das tragédias? Ou não se noticia a tragédia com os pobres porque, para a mídia e para os donos do poder, os pobres, realmente, não contam? A questão é que os pobres que morrem nas filas e nos acidentes cotidianos, vítimas do desvio de verbas, da corrupção... só valem quando podem significar uns votos a mais para legitimar o safado no poder.
Faltou merenda na escola! Você viu a TV e outros jornais ficarem semanas a fio explorando e denunciando o fato? Morreu duas centenas de figurões num corriqueiro acidente aéreo, quanto tempo a mídia usa para explorar a catástrofe?
Ta essa balburdia toda em torno do acidente. Mas você já observou que não se trata de gente comum? Quantos deles eram trabalhadores em expediente de trabalho? Quantas das crianças e jovens que morreram ali eram filhos de pais desempregados, biscateiros e outros tantos sobreviventes da vida assalariada?
Você já percebeu que aquilo que pode ser de interesse da coletividade dos empobrecidos não permanece na mídia? Já percebeu que aquilo que diz respeito à vida de alguns privilegiados é noticiado à exaustão enquanto a tragédia do povo é esquecida? Ou, justamente, para ocultá-la?
Tá na hora, meu amigo, de começar a calcular o valor da tua vida, para os donos do poder!

Neri de Paula Carneiro
Filósofo, Teólogo, Historiador.

Nenhum comentário: